quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Queremos que o nosso café seja o melhor, e produzido só por mulheres, dizem produtoras(Folha de São Paulo)

 Mônica Bergamo

Teté Ribeiro

Julia e Nadia Nasr, proprietárias do Café por Elas - Ronny Santos/Folhapress

A sede do Café Por Elas, um mix de escritório, laboratório e torrefação parece cenário de filme de Hollywood. Tudo é interessante e charmoso, organizado, sem bagunça nem barulho excessivo.

A decoração, entre móveis vintage, maquinário moderno, muitas cafeteiras, balanças e xícaras, dá a impressão de que foi tudo armado para ser fotografado, como se um decorador tivesse acabado de passar por ali para impressionar quem chega.

Mas é só um sintoma do cuidado que as irmãs e sócias Julia, 29, e Nadia Nasr, 33, têm com sua empresa, fundada em 2018 com o objetivo de homenagear a mãe, a cafeicultora Adabia Gomes da Silva.

A torrefação do Café Com Elas fica no coração de Santa Cecília, na rua Barão de Tatuí, um lugar que abriga também uma outra empresa de café, a FAF, sigla para Fazenda Ambiental Fortaleza, que comercializa grãos especiais.

Há pelo menos quatro boas cafeterias no entorno e, onde tem café, tem bolinho, pão de queijo, amigos, namorados ou colegas de trabalho se encontrando.

Mas esse microcosmo tão especial não surgiu assim, prontinho. Teve força de vontade, trabalho duro, reações contrárias, atrito em família e até uma terapia pontual para superar os desafios de trabalhar em família.

"Nossa mãe sempre quis produzir café, ela é uma apaixonada por esse cultivo", conta Julia. "Ela tinha uma terra na região de São Sebastião do Paraíso, no sul de Minas Gerais, um lugar muito bom para café, onde aprendeu muito sobre o plantio. Mas era longe demais para ir e vir de São Paulo, mais de quatro horas de estrada".

"Então ela e meu pai [o descendente de libaneses José Augusto Nasr] decidiram comprar um pedaço de terra no estado de São Paulo, em Dourado, onde ela botaria em prática o sonho de cultivar o próprio café", completa Nadia.

A região de Dourado, bem no coração de estado, é quase toda tomada por plantações de cana, um tipo de monocultura geralmente feita por indústrias que arrendam terras e utilizam aviões de pesticidas tóxicos para quem vive na área.

Tudo que Abadia não queria. E, assim que assumiu a propriedade, cheia de sonhos, teve o primeiro encontro com o pior do patriarcado, tão enraizado na história do cultivo do café e do Brasil.

"Nossa mãe recebeu, na chegada, um pedido de demissão em massa de todos os homens que trabalhavam na fazenda", conta Julia. "Então começou a contratar mulheres em posições em que, normalmente, não se vê mulher, como mecânica, tratorista e também em cargos administrativos. Foi tudo de uma forma orgânica, e fez uma rede de mulheres para trabalhar com ela no campo".

Por volta de 2016, Julia e Nadia, cada uma batalhando por suas próprias conquistas, decidiram —como algo extra na vida já bastante atribulada de duas jovens advogadas— produzir um café especial, de qualidade superior, dentro da plantação de sua mãe.

Um café para ser considerado especial precisa atender a uma série de regras técnicas, que vão desde o tipo de grão até uma nota mínima de 80, numa escala de zero a 100, dada por uma organização global chamada Specialty Coffee Association (SCA, na sigla).

Julia e Nadia Nasr em um dos espaços do Café por Elas, na rua Barão de Tatuí - Ronny Santos/Folhapress

Mas não basta atingir a nota: o cultivo e a colheita precisam ser feitos em situações específicas para que os grãos verdes e maduros não se misturem com os que já passaram do ponto. O armazenamento das sacas de café tem que ser controlado e a produção deve ter um olhar para a sustentabilidade, com valorização especial de pequenos produtores.

Por fim, a torra, a ser feita com o maior cuidado do mundo, para que os sabores e os aromas de cada café sejam realçados. Quando um café é plantado, colhido e armazenado sem tanto cuidado, o que se costuma fazer é torrar demais, o que pode mascarar possíveis problemas, mas resulta numa bebida mais escura e amarga que os cafés especiais. É o café de todo dia, aquele que a gente toma na padaria da esquina, em casa, no trabalho e segue a vida. Bom também, ninguém duvida. Mas o especial é melhor.

Quando conseguiram uma safra que tinha todos os quesitos de um café especial, Julia e Nadia criaram uma embalagem para oferecer a novidade para amigos e possíveis compradores e criaram o nome que celebra a história de sua mãe: Café Por Elas.

No caminho, as duas também se pegaram apaixonadas pelo novo campo de trabalho que se abria. E, dois anos depois da primeira colheita, decidiram abrir mão de seus empregos no mundo corporativo e dedicar todo o tempo e energia à empresa familiar. Faltava um único elemento para elas: uma torrefação.

"E muito conhecimento técnico também", conta Julia, que foi fazer uma especialização em degustação de café, para ter ela mesma a habilidade de ajustar o produto que chega ao mercado. Nadia focou em aumentar a gama de produtoras de café, já que Abadia não seria mais a única fornecedora de grãos.

"Acabei de voltar de uma viagem para a Chapada Diamantina. Fui conhecer umas produtoras de café especial de lá. É um movimento que começou há uns cinco anos e vem ganhando muita força", conta Nadia, que tem mais ou menos 20 produtoras em seu portfólio, entre São Paulo, Minas, Espírito Santo e Bahia.

"Café especial gosta de sombra e água fresca, mas não tolera muito frio. Qualquer geada acaba com a produção, mata a árvore", diz ela. "Por isso não tem muito nos estados mais ao sul".

Mas o destino ainda tinha um obstáculo para botar no caminho das meninas, como um teste de sobrevivência. As irmãs, que se dão tão bem e trocam elogios durante a conversa, uma exaltando as qualidades profissionais da outra, começaram a se desentender no gerenciamento da empresa.

"A gente não conseguia se comunicar direito, parece que eu falava uma coisa e a Nadia ouvia outra e vice-versa", conta Julia. "Teve um momento que eu pensei ‘isso não vai dar certo. A ideia é linda, mas impraticável’", afirma Nadia.

Antes de desistirem da empreitada, as irmãs decidiram dar uma chance para a psicologia, e contrataram um terapeuta de família. "Foi nossa salvação. A gente nem fez muito tempo, mas, ali, na presença de uma profissional de desatar nós entre as pessoas, descobrimos que nossa falha de comunicação era até fácil de resolver. E resolvemos", comemora Julia.

E já que desafio pouco é bobagem, elas agora combinaram com a mãe de transformar completamente a maneira de plantar café. Em vez de monocultura, como costumava ser, Abadia, Nadia e Julia estão apostando em uma agricultura regenerativa e agroflorestal.

"Na prática, isso significa que vamos cultivar outras plantas junto com as árvores de café. Algumas serão mais altas, para dar ao café a sombra que ele gosta, outras rasteiras, que ajudam a regenerar o solo.

"A gente precisa retribuir um pouco para a terra tudo que a gente consome", diz Nadia. "E pensar na nossa matéria-prima mesmo, no que a gente produz e no impacto que isso tem no meio-ambiente. Dá para fazer as coisas de uma forma menos agressiva, a gente não pode não olhar para o todo", diz Julia.

Outra vontade é chegar até a casa dos consumidores. Hoje em dia, o Café Por Elas é servido nos restaurantes Le Jazz, Nelita, Mag, na Âme Patisserie e na Padoca do Mani, onde também é possível comprar o café para tomar em casa. Além desses, o restaurante carioca Teva Deli e o supermercado Santa Luzia vendem o café, comercializado ainda pelo site da empresa.

"E se alguém bater na porta da nossa torrefação, de segunda a sexta, no horário comercial, a gente vende o nosso café", confessa Julia. "Mas meu maior desejo é chegar dentro de muitas casas, pelo Brasil inteiro, e contar as histórias das nossas produtoras", diz Nadia.

Café não vai faltar, garantem elas, e a conversa, essa eu posso comprovar, é muito boa.

 Fonte: Folha de São Paulo

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