Mônica Bergamo

A sede do Café Por Elas, um mix de escritório, laboratório e torrefação parece cenário de filme de Hollywood. Tudo é interessante e charmoso, organizado, sem bagunça nem barulho excessivo.
A decoração, entre móveis vintage,
maquinário moderno, muitas cafeteiras, balanças e xícaras, dá a
impressão de que foi tudo armado para ser fotografado, como se um decorador
tivesse acabado de passar por ali para impressionar quem chega.
Mas é só um sintoma do cuidado que as
irmãs e sócias Julia, 29, e Nadia Nasr, 33, têm com sua empresa, fundada em
2018 com o objetivo de homenagear a mãe, a cafeicultora Adabia Gomes da Silva.
A torrefação do Café Com Elas fica
no coração de Santa Cecília, na rua Barão de Tatuí, um lugar que abriga também
uma outra empresa de café, a FAF, sigla para Fazenda Ambiental Fortaleza, que
comercializa grãos especiais.
Há pelo menos quatro boas cafeterias no entorno e, onde tem café, tem bolinho,
pão de queijo, amigos, namorados ou colegas de trabalho se encontrando.
Mas esse microcosmo tão especial não surgiu assim, prontinho.
Teve força de vontade, trabalho duro, reações contrárias, atrito em família e
até uma terapia pontual para superar os desafios de trabalhar em família.
"Nossa mãe sempre quis produzir café, ela é uma apaixonada
por esse cultivo", conta Julia. "Ela tinha uma terra na região de São
Sebastião do Paraíso, no sul de Minas Gerais, um lugar muito bom para café,
onde aprendeu muito sobre o plantio. Mas era longe demais para ir e vir de São
Paulo, mais de quatro horas de estrada".
"Então ela e meu pai [o descendente de libaneses José
Augusto Nasr] decidiram comprar um pedaço de terra no estado de São Paulo, em
Dourado, onde ela botaria em prática o sonho de cultivar o próprio café",
completa Nadia.
A região de Dourado, bem no coração de estado, é quase toda
tomada por plantações de cana, um tipo de monocultura geralmente feita por
indústrias que arrendam terras e utilizam aviões de pesticidas tóxicos para
quem vive na área.
Tudo que Abadia não queria. E, assim que assumiu a propriedade,
cheia de sonhos, teve o primeiro encontro com o pior do patriarcado, tão
enraizado na história do cultivo do café e do Brasil.
"Nossa mãe recebeu, na chegada, um pedido de demissão em
massa de todos os homens que trabalhavam na fazenda", conta Julia.
"Então começou a contratar mulheres em posições em que, normalmente, não
se vê mulher, como mecânica, tratorista e também em cargos administrativos. Foi
tudo de uma forma orgânica, e fez uma rede de mulheres para trabalhar com ela
no campo".
Por volta de 2016, Julia e Nadia,
cada uma batalhando por suas próprias conquistas, decidiram —como algo extra na
vida já bastante atribulada de duas jovens advogadas— produzir um café
especial, de qualidade superior, dentro da plantação de sua mãe.
Um café para ser considerado especial precisa atender a uma
série de regras técnicas, que vão desde o tipo de grão até uma nota mínima de
80, numa escala de zero a 100, dada por uma organização global chamada
Specialty Coffee Association (SCA, na sigla).
Julia e Nadia Nasr em um dos espaços do Café por Elas, na rua Barão de Tatuí -
Mas não basta atingir a nota: o cultivo e a colheita precisam ser feitos em situações específicas para que os grãos verdes e maduros não se misturem com os que já passaram do ponto. O armazenamento das sacas de café tem que ser controlado e a produção deve ter um olhar para a sustentabilidade, com valorização especial de pequenos produtores.Por fim, a torra, a ser feita com o maior cuidado do mundo, para
que os sabores e os aromas de cada café sejam realçados. Quando um café é
plantado, colhido e armazenado sem tanto cuidado, o que se costuma fazer é
torrar demais, o que pode mascarar possíveis problemas, mas resulta numa bebida
mais escura e amarga que os cafés especiais. É o café de todo dia, aquele que a
gente toma na padaria da esquina, em casa, no trabalho e segue a vida. Bom
também, ninguém duvida. Mas o especial é melhor.
Quando conseguiram uma safra que tinha todos os quesitos de um
café especial, Julia e Nadia criaram uma embalagem para oferecer a novidade
para amigos e possíveis compradores e criaram o nome que celebra a história de
sua mãe: Café Por Elas.
No caminho, as duas também se
pegaram apaixonadas pelo novo campo de trabalho que se abria. E, dois anos
depois da primeira colheita, decidiram abrir mão de seus empregos no mundo
corporativo e dedicar todo o tempo e energia à empresa familiar. Faltava um
único elemento para elas: uma torrefação.
"E muito conhecimento técnico também", conta Julia,
que foi fazer uma especialização em degustação de café, para ter ela mesma a
habilidade de ajustar o produto que chega ao mercado. Nadia focou em aumentar a
gama de produtoras de café, já que Abadia não seria mais a única fornecedora de
grãos.
"Acabei de voltar de uma viagem para a Chapada Diamantina.
Fui conhecer umas produtoras de café especial de lá. É um movimento que começou
há uns cinco anos e vem ganhando muita força", conta Nadia, que tem mais
ou menos 20 produtoras em seu portfólio, entre São Paulo, Minas, Espírito Santo
e Bahia.
"Café especial gosta de sombra e água fresca, mas não
tolera muito frio. Qualquer geada acaba com a produção, mata a árvore",
diz ela. "Por isso não tem muito nos estados mais ao sul".
Mas o destino ainda tinha um obstáculo para botar no caminho das
meninas, como um teste de sobrevivência. As irmãs, que se dão tão bem e trocam
elogios durante a conversa, uma exaltando as qualidades profissionais da outra,
começaram a se desentender no gerenciamento da empresa.
"A gente não conseguia se comunicar direito, parece que eu
falava uma coisa e a Nadia ouvia outra e vice-versa", conta Julia.
"Teve um momento que eu pensei ‘isso não vai dar certo. A ideia é linda,
mas impraticável’", afirma Nadia.
Antes de desistirem da empreitada, as irmãs decidiram dar uma
chance para a psicologia, e contrataram um terapeuta de família. "Foi
nossa salvação. A gente nem fez muito tempo, mas, ali, na presença de uma
profissional de desatar nós entre as pessoas, descobrimos que nossa falha de
comunicação era até fácil de resolver. E resolvemos", comemora Julia.
E já que desafio pouco é bobagem,
elas agora combinaram com a mãe de transformar completamente a maneira de
plantar café. Em vez de monocultura, como costumava ser, Abadia, Nadia e Julia
estão apostando em uma agricultura regenerativa e agroflorestal.
"Na prática, isso significa que vamos cultivar outras
plantas junto com as árvores de café. Algumas serão mais altas, para dar ao
café a sombra que ele gosta, outras rasteiras, que ajudam a regenerar o solo.
"A gente precisa retribuir um pouco para a terra tudo que a
gente consome", diz Nadia. "E pensar na nossa matéria-prima mesmo, no
que a gente produz e no impacto que isso tem no meio-ambiente. Dá para fazer as
coisas de uma forma menos agressiva, a gente não pode não olhar para o
todo", diz Julia.
Outra vontade é chegar até a casa dos consumidores. Hoje em dia,
o Café Por Elas é servido nos restaurantes Le Jazz, Nelita, Mag, na Âme
Patisserie e na Padoca do Mani, onde também é possível comprar o café para
tomar em casa. Além desses, o restaurante carioca Teva Deli e o supermercado
Santa Luzia vendem o café, comercializado ainda pelo site da empresa.
"E se alguém bater na porta da nossa torrefação, de segunda
a sexta, no horário comercial, a gente vende o nosso café", confessa
Julia. "Mas meu maior desejo é chegar dentro de muitas casas, pelo Brasil
inteiro, e contar as histórias das nossas produtoras", diz Nadia.
Café não vai faltar, garantem elas, e a conversa, essa eu posso
comprovar, é muito boa.
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