segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Uma viagem no tempo: Fazenda Guatapará. A falta de sensibilidade dos governantes, apagou uma história cultural, arquitetônica e ambiental para a população

Sergio Ronco 
A vida nos dá alguns presentes. Um dos melhores são as lembranças, e um dos piores são as saudades, dizia Kaobe Abiles.

Fazenda Guatapará, um encanto de lugar onde no passado viveu famílias de trabalhadores e muitos se casaram no local, criaram seus filhos, foram embora e até hoje sentem saudades de uma ápoca áurea de muita fartura, amizade e respeito aos patrões.
 Planta da Sede da Fazenda Guatapará
Sede da Fazenda Guatapará anos 60

As lembranças são marcantes e jamais se apagarão, afinal o que levamos desta vida são os momentos mágicos que vivemos. Confesso que minhas memórias se confundem com sonhos e esses sonhos se tornaram realidade um dia.

Todos nós guardamos nos nossos corações, lá no cantinho da saudade, passagens que levaremos conosco até os últimos dias de  nossas vidas.

Após mais de 50 anos, ao voltar de Ribeirão Preto, uma força superior me fez entrar em uma propriedade no trajeto, a qual guardo as melhores das lembranças: Fazenda Guatapará. O aperto no coração ocorreu logo na entrada quando visualizei um dos dois pilares centenários que marcam a entrada da propriedade, tombado. Não sei se foi pela ação do homem, do tempo, ou até mesmo um acidente. Mas a verdade é que restou apenas um deles em pé.
 Pilar da entrada da Fazenda Guatapará, tombado

De longe, na estrada era possível avistar os dois pilares do portal de entrada da Fazenda Guatapará.
Portal de entrada da Fazenda Guatapará - anos 70

Logo no caminho que levava à sede da fazenda, fui alternando saudade com tristeza. Sabia que  muito do que vivenciei nos anos 60, não existia mais. O caminho não mudou muito, e cada quilômetro percorrido em estrada de chão, fui memorizando o que viria pela frente. Minha expectativa era encontrar a primeira construção depois de bom trecho percorrido, a capela de São Martinho.
 No local da antiga Capela(foto acima), apenas duas árvores em pé(abaixo)

Tinha em mente o exato local. Duas das árvores  do entorno da capela, lá estão, mas infelizmente a capela foi ao chão. Vale a pergunta: o que atrapalharia manter a capela naquele lugar? Sabemos lá quantas promessas realizadas, quantas graças alcançadas  de fiéis que frequentaram a igreja por longos anos? Quantas crianças ali batizadas, quantos jovens se casaram naquela casa de orações... Mas é assim mesmo, o homem constrói  e o próprio destrói. Fico imaginando, a propriedade quando passou à família Silva Gordo era constituída de aproximadamente três mil alqueires, pois quatro mil alqueires passaram para a colônia japonesa da Mombuca. Se juntasse todas as construções da fazenda, talvez não chegasse a 1 alqueire, o porque não preservá-la?

E o Clube Atlético Guatapará? Não sobrou nada dele? Não, absolutamente nada! Local de congraçamento do povoado que aos finais de semana lotava as dependências do prédio cheio de alegria. Quantos "namoricos" tiveram começo naquele salão mágico.
 Antigo Clube Atlético Guatapará. Hoje, nem vestígios

Caminhando pela rua do cinema me fiz a pergunta: será que tiveram a coragem de por ao chão o grupo escolar(foto ao lado), onde uma população de crianças estudou recebendo os primeiros ensinamentos? Não, não seriam "corajosos a tal ponto"! 

Ledo engano meu, o que restou  do Grupo Escolar Professor Álfio Getúlio Schettini, foi apenas a escadaria de acesso ao grupo. Malditos! Apagaram da história e da memória de Guatapará o local onde hoje   médicos, engenheiros, advogados, executivos e outros profissionais iniciaram seus estudos. 
Escadaria de acesso ao Grupo Escolar, o que sobrou.... 


Na mesma rua do grupo escolar, a dor e a saudade me atingiram em cheio. E nesse quesito alternei decepção com emoção. A decepção, é claro, é ver como está um dos locais de diversão da população de Guatapará. A saudade, é de ter visto ao menos um pedacinho do que aquele prédio representou e  simbolizou, o Cine Guatapará.

Naquele dia é como se um filme passasse na minha cabeça dos maravilhosos momentos vividos em uma das mais belas fazendas que conheci. Que tristeza ao vê-lo nas atuais condições. Apenas um bloco restou da sala de filmes. 
Em busca das boas lembranças....
Pouco restou do Cine Guatapará 
No passado, Dia de festa no Cine Guatapará - anos 60/70

Fui um pouco a frente para ver se ainda havia vestígios de outras construções, como a farmácia e a carreira de casas de colonos. Nada mais!
Antiga farmácia da Fazenda Guatapará. Hoje não existe mais.

Segui descendo a estrada e na curva onde havia o Armazém do “Seo Motta”, alguns pedaços de construção ainda permanecem. Da tulha também sobraram alguns tijolos em pé. 
Paredão e escadaria que levava ao Empório do "Seo Motta".

Sigo em frente na esperança de ver o pomposo escritório, local administrativo da fazenda que contabilizava as fartas colheitas do café, lavoura principal de Guatapará com área superior a sete mil alqueires. Mais uma decepção, o que sobrou foi apenas um pedaço da mureta de entrada do escritório, no interior o mato tomou conta. A indicação na foto abaixo com a inscrição do nome da propriedade era uma referência aos pilotos de aviões o local de campo de pouso.
 Do escritório, só restou a mureta 

Já com um nó na garganta, fiquei imaginando o que me aguardava logo ali a frente quando na minha memória estavam os portões da entrada da sede com seus pilares e guaritas e no interior, um dos bosques mais bonitos que vi em toda minha vida. Árvores de todas as espécies, muitas mudas vindas de outros países. A sede majestosa recebeu personalidades do mundo todo. Presidentes, governadores, príncipes e princesas.
Parte frontal da sede da Fazenda Guatapará - anos 60

O embaixador do Japão no Brasil, se hospedou nas suntuosas instalações da Fazenda Guatapará.
Comitiva japonesa em registro tendo ao fundo a sede da fazenda

O Rei Alberto da Bélgica, foi outra personalidade que esteve hospedado na Fazenda Guatapará. Como de praxa, cada visitante plantava uma árvore e assinava o livro de visitantes. Cadê o livro?
Rei Alberto da Bélgica plantando uma árvore no bosque da sede da Fazenda - 1920.

Santos Dumont em visita à Fazenda Guatapará em 1920. Como perder um patrimônio com esse? O país não guarda o que tem de precioso, sua histórias. A Fazenda Guatapará jamais poderia ser demolida.
Santos Dumont visitou e plantou uma árvore nos jardins da sede da fazenda, que hoje está em total abando no meio do mato e sede demolida.

Cada árvore foi plantada por uma dessas personalidades e com a devida placa informando o tipo, a procedência e quem havia plantado. Um livro, que possivelmente não existe mais, bem como a própria sede, registrava a presença dos visitantes. O que restou da entrada principal do "Palacete" se esconde ao meio do mato denso.
 Guarita e pilar da entrada para o bosque da sede da Fazenda Guatapará


As boas lembranças fazem parte do passado, pois o presente é terrivelmente decepcionante e até mesmo ingrato com a história, pois perdemos a grande oportunidade de passar para as próximas gerações como Gatapará foi importante como modelo de propriedade rural instalada no coração do Estado de São Paulo. Caberia também uma homenagem aos  Imigrantes italianos, que chegaram ao  Brasil dispostos a trabalhar na terra fértil da região de Ribeirão Preto e com os seus braços fortes ajudaram no desenvolvimento de Guatapará.

Na foto abaixo, as guaritas na sua originalidade posicionadas na entrada da sede da Fazenda Guatapará  conhecido como "Palacete", pois era o estilo de construção dos palacetes da avenida Paulista em São Paulo.
Guarita de entrada ao Palacete - anos 60/70

Quem disse que homem não chora? Depois de rodear uma área que sabia que ali era o local do tal bosque tendo ao centro a tal sede, encontrei os pilares e a guarita de entrada no meio do mato. O máximo que consegui, foi adentrar alguns metros e registrar o que sobrou. Até tentei ir mais a frente, mas despreparado para desbravar aquele local de mato fechado, não consegui avançar. Muitas das árvores estão no chão, muitas ainda sobreviveram. Algumas enormes.
Palmeiras Imperiais no interior do bosque da sede da Fazenda Guatapará

Não me restou outra alternativa senão ir embora. Não queria que aquele dia tivesse sido de total tristeza. Voltei mais 100 quilômetros até chegar ao meu destino, com a mente voltada para os bons momentos que passei junto a um grande amigo, Luiz Antonio Giordano e sua bela família. Só tenho que agradecer a oportunidade de conviver com gente da mais alta qualidade em lugares que jamais sonhava em conhecer.

De lembrança, levei uma cerâmica que enfeitava o arco de entrada do Cine Guatapará e a escadaria interna. O tijolo também é uma lembrança do portal de entrada da fazenda que hoje só restou um dos pilares. O pedaço pequeno e escuro em cima do tijolo, é uma das letras Guatapará do próprio pilar. O que para muitos pode parecer insignificante, para mim tem valor de uma peça de alto quilate. A tristeza quero deixar para trás, porém,  jamais esquecerei o lugar onde me fez feliz.
Cerâmica do Cine Guatapará, tijolo e letra do pilar que tombou

Prometo que vou voltar logo, para desbravar e garimpar mais alguns tesouros que guardarei com muito carinho no cantinho da saudade.
Veja Aqui as fotos da visita à Fazenda Guatapará
Fotos atuais: Sergio Ronco
Fotos antigas: Internet
Em tempo: Recebi um comentário de um cidadão que tem suas raízes fortemente fincadas na Fazenda Guatapará, Antonio Motta Filho: 

Caro Sergioronco,
Me manifestei a respeito de sua postagem sobre a Fazenda Guatapará e no decorrer da descrição do que restou do local, ver as fotos de seu imobiliário destruido, não me furto a dizer que lágrimas escorreram pela face. Perguntas que não me deixam calar: por que a destruição da Capela de São Martinho, por que a destruição do clube, cinema, escritório, palacete e outros mais. Sera que nesses locais gerariam ou geram tanto lucro com alguns pés de cana? Muito apropriado seu comentário sobre a Família Morganti e Giordano, dignos de uma sensibilidade fora do comum. Sua descrição e comentário sobre a Fazenda Guatapará tem uma profundida tamanha que só quem viveu naquele lugar, um verdadeiro "paraiso", pode declinar da emoção e saudade de um lugar que não mais existe.
Abraços, 
Motta

6 comentários:

Arquitetando na Cozinha JP disse...

Que honra ver meu desenho como capa da Fazenda Guatapará ,saudades .

Ana Paula Marchetti disse...

Estou aqui com minha mãezinha, que nasceu na Fazenda Guatapará, hoje com 76 anos, muito triste em saber de toda essa destruição... ela tinha muita esperança em revisitar sua fazenda amada... Agora sabe que isso nunca mais será possível. Muito triste!

Unknown disse...

Minha vó nasceu em 1939 na colônia Marco de pedra e depois mudou para a colônia São Martins perto do cinema. Ela conseguiu visitar mas ficou triste quando viu que tudo se acabou.

Unknown disse...

Alguns anos a última geração da fazenda Guatapará estão de partida, alguns se interessaram em preservar o que sobrou da histórias outros não.
Será que no futuro iram lembrarem da gente?

Rita de Cassia disse...

Bom dia! que prazer saber algo dessa fazenda! Foi Luiz Antonio de Assunçao Leite que iniciou essa fazenda. Ele era irmao de minha bisavo Henriqueta Toledo Leite. Outras fazendas que ele tambem foi proprietario:Sao Martinhp,Santos Dumont e Genebra. Meu nome Rita de Cassia Lopes Bruno,filha de Henriqueta Alves Toledo,neta de Joaquim Alves Toledo e bisneta de Henriqueta de Toledo Leite.

claudio mor disse...

A memória a ser preservada não seria somente para os que lá, nasceram mas, de algum modo, por lá, passaram ou conviveram com o lugar como minha familia, onde lá, passamos em muitos momentos, e de qualquer.modo, foi um modo de vida socioeconômico do paí. As construções das casas dos colonos era um retrato vivo de um tempo do país.