DROGAS
Clínicas particulares
consideram 105 dias de internação o mínimo necessário para o primeiro
ciclo contra a dependência química. Na rede pública estadual do Rio,
atendimento é apenas ambulatorial
Jovem éconduzido para abrigo após mais uma operação de combate ao crack, no Rio
(Divulgação / SMAS).
“É difícil manter o paciente em tratamento ambulatorial. O paciente simplesmente não vai ao tratamento. A única forma de tratar o vício do crack é com a internação”, diz Jaber
Pâmela Oliveira e Cecília Ritto
Entre os muitos caminhos possíveis para combater o crescimento
devastador do crack nas cidades brasileiras, pelo menos dois são
inescapáveis: é preciso combater o tráfico e os pontos de venda; e é
preciso tratar urgentemente os dependentes químicos, grande parte desse
grupo formada por menores de idade oriundos de famílias pobres. Em
relação ao crack, nada é simples ou barato. E no momento, no Rio de
Janeiro, o descompasso entre essas duas ações torna os esforços quase
nulos. Como VEJA mostrou ao longo da última semana, o governo do estado
empenhou recursos na ocupação da área onde se formou a maior cracolândia
do estado, próxima das favelas de Manguinhos e do Jacarezinho. Já no
dia seguinte à ocupação, os usuários, mesmo aqueles recolhidos pelas
equipes de assistência social, reapareceram nos arredores de outros
pontos de venda da droga. Não há como ser diferente: as duas únicas
clínicas do estado estavam fechadas, e não há, por enquanto, onde tratar
os adultos em situação de dependência.
VEJA apurou que pacientes internados interromperam o tratamento.
Como os contratos com o estado estavam vencidos, dependentes em
recuperação simplesmente receberam alta e voltaram para a rua. A
promessa do governo estadual era de, nesta segunda-feira, restabelecer
os contratos com as duas clínicas, que juntas oferecem 150 vagas.
Como toda medida anunciada sem que se tenha de fato a solução para o
problema, a retomada do funcionamento das clínicas não aconteceu. O
governo do estado informou que “começará a capacitar” esta semana a
equipe que atenderá os dependentes na clínica de Santa Cruz, na de Campo
Grande e de Casemiro de Abreu. Para quem não conhece o eufemismo das
versões oficiais, a mensagem é a seguinte: atualmente não existe
tratamento adequado. O governo do estado explica que está em curso uma
"reestruturação" do estado para o combate aos usuários de drogas, para
iniciar o novo tratamento já na próxima semana. Ou seja: em uma semana o
governo do estado consideram ser capaz de preparar gente para lidar com
dependentes da mais mortal das drogas.
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O plano do governo do estado para os dependentes químicos é o seguinte:
os usuários que por ventura buscarem tratamento devem procurar um dos
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, os Caps AD. Nesses
locais é possível retirar medicamentos e receber tratamento apenas
ambulatorial – o dependente químico pode passar o dia em um Caps, mas
não há internação ou pernoite. O trabalho dos psicólogos é criar um
vínculo com o paciente para estimular o retorno dele. “Não é punição ou
recolhimento”, reforça Fernanda San Martin, coordenadora do observatório
estadual de gestão e informação sobre drogas do governo do Rio. A
equipe desses centros poderá encaminhar os pacientes para outro estágio
do tratamento, no Centro de Atendimento Regionalizado para Situação de
Álcool e Outras Drogas, estrutura ainda a ser criada, atrelada às
secretarias de Assistência Social e Saúde.
Nos centros regionais, quando inaugurados, os dependentes passarão por avaliação médica e entrevistas com equipe multidisciplinar. As portas continuarão abertas para que os usuários saiam quando quiserem. “Todas as clínicas do estado estão abertas. Os lugares devem garantir a liberdade”, diz Fernanda, na contramão do que as clínicas particulares têm feito para conseguir tratar esse tipo de paciente.
Nos centros regionais, quando inaugurados, os dependentes passarão por avaliação médica e entrevistas com equipe multidisciplinar. As portas continuarão abertas para que os usuários saiam quando quiserem. “Todas as clínicas do estado estão abertas. Os lugares devem garantir a liberdade”, diz Fernanda, na contramão do que as clínicas particulares têm feito para conseguir tratar esse tipo de paciente.
Mesmo em condições ideais o tratamento do crack é um caminho tortuoso e
dificílimo para paciente, famílias e profissionais envolvidos.
Responsável por uma clínica na zona oeste do Rio onde há permanentemente
cerca de 50 dependentes em tratamento para se livrar da droga, o médico
Jorge Jaber compara o comportamento do usuário de crack ao de um animal
em busca de alimento. “O dependente do crack ouve, mas não escuta. Vê,
mas não enxerga. O mecanismo de atenção está totalmente voltado para
obter a substância. Da mesma forma que um animal faminto, que só enxerga
a comida, a única coisa que o usuário enxerga é o crack”, afirma Jaber,
presidente da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas.
A clínica coordenada por Jaber recebe majoritariamente clientes de
planos de saúde. A estimativa de custo de tratamento, em clínicas
particulares, é de 25 mil reais para o ciclo de tratamento de 105 dias.
Este período inicial, ressalta Jaber, é o mínimo para assegurar o início
da recuperação. E ainda assim as chances de sucesso na primeira
internação são pequenas: só 30% dos dependentes que recebem tratamento
apenas uma vez conseguem não voltar. A maioria precisa de sucessivas
internações. Ainda assim, a vigilância deve ser permanente para o resto
da vida, alerta Jaber.
“O crack é uma substância com alto poder de causar dependência. Uma
pessoa que experimenta e fuma quatro ou cinco vezes em um dia já se
torna praticamente dependente. E o tratamento é mais difícil. É mais
longo do que o de um dependente em cocaína, por exemplo. Em média,
depois de 15 dias de desintoxicação, o usuário de crack precisa de mais
90 dias internado para conseguir desenvolver mecanismos psicológicos
para evitar voltar à droga. É o tempo básico. Já o usuário de cocaína
precisa de 45, em média”, afirma.
Dado o poder de criar dependência, é improvável que apenas o tratamento
ambulatorial seja capaz de reverter o quadro do paciente. E a
interrupção do tratamento, como ocorreu nas clínicas do estado do Rio,
joga fora qualquer avanço. “É difícil manter o paciente em tratamento
ambulatorial. O paciente simplesmente não vai ao tratamento. A única
forma de tratar o vício do crack é com a internação”, diz Jaber.
Internação
A fase inicial é de desintoxicação, e se estende pelos primeiros 15
dias. Como o paciente não tem controle nem noção dos prejuízos causados
pela droga, o tratamento resume-se a medicamentos para reduzir as crises
de abstinência e a ansiedade. O dependente volta a ter horário para
dormir e vontade de comer.
E aí surge outra explicação para os efeitos pífios das políticas
públicas contra o crack até o momento: na rede pública de saúde do
estado do Rio o atendimento é apenas ambulatorial. Ou seja, o paciente
chega, recebe os cuidados médicos e sai quando quer, sem receber o
acompanhamento psiquiátrico necessário para reduzir as chances de,
novamente, buscar a droga.
Para todo o estado do Rio, havia, antes do fim do contrato com as duas
clínicas de dependência química para adultos, 300 vagas disponíveis para
todo tipo substância. O total de usuários de crack só na capital é um
chute: seriam 3.000 os viciados, entre adultos e crianças. Apesar de o
total de vagas no estado ser ínfimo, não chega a haver superlotação.
Afinal, o dependente de crack raramente busca tratamento.
A chegada do crack à classe média, no entanto, já cria uma fila para
tratamento na rede particular. Pela primeira vez em 20 anos, a Clínica
Jorge Jaber, que tem capacidade para receber 70 pacientes, tem fila de
espera. “O crack não é mais droga de pobre. Recebo com frequência
pacientes de classe média que já foram retirados por suas famílias das
ruas, de cracolândias. É muito triste. Essa turma do crack se vende por
qualquer coisa, é um negócio deprimente", afirma.
“Geralmente o usuário da classe média que se vicia em crack já usou
maconha, álcool ou cocaína sem ficar dependente de imediato. Então
acredita que tem um domínio e experimenta. Mas um fim de semana já é
suficiente para se viciar”, diz, acrescentando que 30% dos que concluem o
tratamento internado pela primeira vez não têm recaídas nos seis meses
posteriores. Na cocaína, o índice é de 66% a 72% em 1 ano e 8 meses após
a alta da clínica.
O médico alerta que o tratamento é para sempre. "O perigo é para
sempre. É como nascer. Depois que caímos no mundo estamos condenados a
viver nele. A única hipótese que nos tira do mundo é a que não queremos,
a morte".
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