quinta-feira, 9 de agosto de 2018

ABORTO....

Recebi o texto do professor Jacy Mendonça que publico abaixo: 
** Republico um texto de 1º de junho de 2015, porque o assunto retornou à pauta do STF e da imprensa.


Aconteceu no nordeste brasileiro. O exame pré-natal mostrou que o feto era anormal – siameses inseparáveis. Os pais entraram em crise emocional e terminaram por pedir autorização judicial para o aborto, o que lhes foi negado. Reabriu-se então o debate público com as teses tradicionais: a mãe tem o direito de dispor de seu corpo; aquele feto não tinha viabilidade; o Código Penal deveria prever essa hipótese de aborto como lícita; quem é contra o aborto estriba-se em razões meramente éticas ou religiosas.

Poucos consideraram que se tratava da pretensão de assassinar um ser humano, pois, como dizia um velho professor, o que está no útero da gestante não é macaco nem laranja... É ser humano em desenvolvimento, in fieri. O que se questiona não é, portanto, o direito à disposição do corpo da mulher pela mulher, mas o direito à  vida a ser assegurado a um ser em misteriosa formação dentro do útero materno.

O argumento de que a viabilidade é pequena, de que ele terá vida curta, é sem sentido. Todos nós nascemos para uma vida curta, sem prazo prefixado, e nem por isso aceitamos que nos neguem o direito de nascer. Uns vivem horas ou dias, outros passam dos 100 anos.

Se não é um nenê loiro de olhos azuis, se não tem a desejada perfeição estética, pouco importa. É um ser humano; e ninguém tem o direito de decidir sobre o padrão de seu filho: branco, preto, vermelho ou amarelo; de cabelos loiros, pretos ou castanhos; de olhos azuis, verdes, castanhos ou pretos; de compleição robusta ou débil.

Por outro lado, toda morte intencional de um ser humano é homicídio doloso e deve ser coibida. Se o Código Penal prevê como legítima a interrupção da gravidez resultante de estupro ou que represente grave risco de vida à gestante, errado está o Código, pois nem essas hipóteses são justificáveis. A criança que se desenvolve no útero materno é um ser indefeso e inocente, que não fez mal a ninguém e não merece ser eliminado pelo simples fato de ser deficiente, inocente e indefeso. Aliás, deficientes somos todos nós; uns mais, outros menos, mas ninguém é perfeito.

Nenhuma crítica a quem teve que optar pela prática do aborto, pois tanto a mãe quanto o pai terão suas razões e podem estar psicológica e moralmente justificados. Respeitável também o sofrimento dos pais em face da notícia de uma gestação anormal. Elogiáveis, porém, aqueles que aceitam o fardo que a existência lhes reservou e dedicam-se ainda mais à pobre criança que apresenta déficit físico ou psíquico, que deles exige muito mais amor e carinho, muito mais atenção e cuidado.

A regra proibitiva do aborto decorre de uma lei da natureza humana, não de um argumento religioso, embora quase todas as religiões a acolham exatamente por ser uma lei da natureza, por isso mesmo justa. É também uma lei ética, como muitas outras que participam ao mesmo tempo do sistema jurídico e do ético.

A História já nos deixou algumas lições sobre o assunto que merecem ser lembradas nessa hora. Na Alemanha, uma gestante, casada com um sifilítico, estava na terceira gravidez. O primeiro filho falecera pouco depois do parto em razão de problemas congênitos; o segundo sobreviveu, com terrível deficiência psíquica. Ela procurou então um médico e pediu-lhe que lhe provocasse o aborto, mas ele negou-se a fazê-lo e a criança nasceu. De fato um deficiente, como esperado. Deu-lhe o nome de Ludwig. Ludwig van Beethoven, um gênio louco que beneficia até hoje a humanidade com a perfeição estética de suas melodias.

Mas o tema gera sempre polêmica. Cada qual com suas razões. As mais intransigentes e impressionantes vêm daqueles que viveram o drama em família. Respeite-se; e respeite-se tudo o que fizeram ou fizerem, pois estão justificados pela intensa emoção. Mas em nada mudam os princípios: todo homem tem direito à vida.

Em geral, os médicos são favoráveis ao aborto nesses casos, porque buscam profissionalmente a eugenia, embora haja eloquentes exemplos em sentido contrário. Nos EEUU, o profissional que mais se dedica a palestras contra o aborto, exibindo dramáticas radiografias do útero materno em que a criança se debate contra seus agressores, arrasta na consciência o peso do aborto que ele mesmo praticou depois de uma relação adulterina com a ex-aluna que engravidou.

Em uma aula na Faculdade de Direito, na qual o tema foi discutido com veementes e contraditórias opiniões, defendi as teses que aqui exponho, respeitando, como sempre, o pensamento contrário de todos os alunos. Ao final da aula, caminhava pelo corredor da escola, quando um dos que mais havia coincidido comigo no debate aproximou-se e reafirmou suas posições acrescentando: conheço uma senhora que, quando moça, foi estuprada por um assaltante que a engravidou; os pais fizeram de tudo para que ela se sujeitasse ao aborto, mas ela recusou energicamente dizendo que era seu filho e ela iria criá-lo. Os anos se passaram e hoje, ele já moço e ela envelhecida, encontram, um no outro, o apoio existencial de que carecem. Ela é tudo para ele na vida e ele é o único suporte econômico e afetivo da vida dela. Depois de uma eloquente pausa, o rapaz terminou seu relato dizendo-me: essa criança sou eu!

Tive dificuldade em continuar caminhando.

JACY DE SOUZA MENDONÇA foi Promotor Público no Estado do Rio Grande do Sul.

Fez carreira universitária, tendo conquistado em concurso público os títulos de Doutor e Livre-docente de Filosofia do Direito na Universidade do Rio Grande do Sul, em cuja Faculdade de Direito lecionou durante 10 anos, como assistente do Prof. Armando Pereira da Câmara.

No mesmo Estado, foi professor titular de Filosofia do Direito nas Faculdades de Direito da PUCRGS,em Porto Alegre, e de Caxias do Sul. Em São Paulo, exerceu o magistério superior na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e no pós-graduação da Faculdade de Direito da PUCSP e da UNICAPITAL.

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