Crise da água: “Podemos chegar a uma convulsão social”
Para o especialista José Galizia Tundisi, a crise hídrica resultará em manifestações populares generalizadas e mais violentas do que as de junho de 2013
ALINE RIBEIRO
Nota da Redação do Blog: O professor Tundise foi Secretário de Governo da atual prefeitura de São Carlos e já esteve em Ribeirão Bonito proferindo palestra.
Nota da Redação do Blog: O professor Tundise foi Secretário de Governo da atual prefeitura de São Carlos e já esteve em Ribeirão Bonito proferindo palestra.
Um dos maiores especialistas em recursos hídricos do Brasil, José
Galizia Tundisi diz que o governo precisa adotar "transparência
absoluta" para enfrentar a crise (Foto: Divulgação)
Em 2007, o consultor José Galizia Tundisi foi chamado para uma missão
desafiadora: encontrar soluções para enfrentar a maior seca do século na
Espanha. Ao restringir o número de litros de água por família e aplicar
multas aos que extrapolavam o limite, o país europeu atravessou a
estiagem sem grandes traumas. Professor da Universidade Feevale, membro
da Academia Brasileira de Ciências e presidente do Instituto
Internacional de Ecologia, Tundisi já ajudou 40 países a gerenciar seus
recursos. Agora, é a vez do Brasil. Em dezembro passado, com outros 14
cientistas, Tundisi lançou uma carta aberta ao governo com sugestões de
medidas emergenciais para contornar a crise. Ele avalia que, se não
chover o necessário, o sistema Cantareira entrará em colapso em março
deste ano. “Sem água, a população pode ir às ruas em manifestações mais
violentas do que as de 2013”, diz. “Corremos o risco de perder o
controle”.
ÉPOCA – Como um país com um dos maiores reservatórios de água do mundo chegou a este ponto?
José Tundisi –
Sempre tivemos a cultura da abundância. Como o Brasil tem 12% das
reservas de água do planeta, gastamos muito. Além disso, há uma crise em
curso. A quantidade de chuvas diminuiu mesmo. Agora é necessário
reformular tudo: diminuir muito a demanda, melhorar a governança,
investir em programas de saneamento e de reuso, um dos grandes problemas
do Brasil.
ÉPOCA – Há pelo menos quatro anos, o volume de chuvas nos
reservatórios do Sudeste vem caindo. Havia dados científicos suficientes
para prever a crise?
Tundisi – Sim, havia.
Faltou um acompanhamento mais próximo das previsões do IPCC (o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que fornece dados
científicos sobre o tema). Em 2001, já sabíamos da seca no Sudeste. Mas
isso não foi levado em conta. Os executivos ficaram tão focados em
oferecer água de qualidade que prejudicaram o planejamento. São Paulo
tem iniciativas boas, mas precisava de um planejamento poderoso e de
longo prazo para a gestão dos recursos hídricos.
ÉPOCA – O governo de São Paulo demorou a admitir a crise?
Tundisi –
Faltou enfatizar a gravidade dela. A transparência deveria ter sido
total. O governo precisava ter dito que não temos só uma crise de
abastecimento, mas de múltiplas dimensões: problemas econômicos,
sociais, de saúde pública, de transporte... Sabe quantos empregos se
perderam com o fechamento da hidrovia do Tietê? Cinco mil. Agora temos
10 mil caminhões usados para transportar o que era levado pelo rio. Sem
contar a crise da energia, a agricultura. Essa questão toda deveria ter
ficado clara para mobilizar a população.
ÉPOCA – Os interesses eleitorais se sobrepuseram aos da população?
Tundisi –
Acho que não. Na minha opinião, tanto o governo federal quanto os
estaduais não perceberam a gravidade da crise. Trataram o sistema mais
burocraticamente. Faltou uma visão sistêmica, assim como planejamento de
longo prazo.
ÉPOCA – Se em março não houver mais água na Cantareira,
conforme suas previsões, vamos precisar de um plano de contingência. De
quem seria a responsabilidade disso? E como seria esse plano?
Tundisi –
A responsabilidade seria não só do governo do Estado, mas também do
federal e do municipal. O plano teria de reduzir ainda mais a demanda,
por meio de mecanismos legais e educacionais, e envolveria racionamento.
Não vai ter jeito. Teremos de restringir uma quantidade de litros por
família, como ocorreu em Barcelona.
ÉPOCA – Como se controla isso? Em tese, a água chegará por caminhões pipa, não mais pelas torneiras...
Tundisi – É
preciso avaliar como será esta logística. Talvez a gente precise
distribuir senhas. Se a gente chegar a este ponto, poderemos ter uma
convulsão social. Algo próximo às manifestações de 2013. Mas mais
intenso e violento. Durante uma reunião da Academia Brasileira de
Ciências, mandamos uma mensagem forte para o governador de São Paulo.
Alertei também o Benedito Braga (o novo secretário de Recursos Hídricos
de São Paulo). Ele me disse inclusive que o governo está preocupado. Se
houver uma situação de redução drástica de água, pode acontecer algo
parecido com o que ocorreu em Itu. A população colocou fogo na Câmara de
Vereadores. Começou a assaltar os caminhões pipas para tirar água antes
que eles chegassem ao seu destino. Por isso, as medidas precisam ser
duras, mas sempre negociadas com a população.
ÉPOCA – A reação da população pode ser ainda pior do que em 2013?
Tundisi –
Não tenha dúvida. Deixa uma pessoa sem água por uma semana em São
Paulo. Com este calor. Com a complexidade desta metrópole. Depois de
trabalhar o dia inteiro, enfrentar trânsito, correr para dar conta dos
compromissos. Ai você chega em casa e não tem água para tomar banho, dar
descarga. Talvez essas manifestações sejam generalizadas, não mais
localizadas. Uma cidade inteira se movimentando. Podemos ter uma reação
em cadeia, sobre a qual não teremos controle.
ÉPOCA – Já é possível dimensionar o impacto econômico da crise?
Tundisi –
Estou começando um estudo para entender a real dimensão da crise.
Quando trabalhei na crise hídrica da Espanha, em 2007, consegui ter uma
ideia disso. Qual foi a solução emergencial? Primeiro, reduzir a
demanda. Cada família tinha direito a cem litros de água por dia.
Segundo, importar água. Diariamente, chegavam quatro navios-tanques da
França com 250 mil metros cúbicos de água cada, durante seis meses.
Terceiro, usar água do mar. Uma planta de dessalinização foi montada às
pressas para abastecer Barcelona. Funcionou, mas os prejuízos foram
enormes, da ordem de 1 bilhão de euros.
ÉPOCA - Quais devem ser os próximos passos adotados aqui?
Tundisi –
Precisamos começar pela transparência total e brutal. É preciso admitir
que a situação é muito grave. Em seguida, temos de reduzir a demanda,
investir em campanhas de conscientização, multas. Por fim, temos de
adotar ações emergenciais. A mais imediata é recuperar a Represa
Billings. Como ela tem muitos braços, você pode seccionar alguns deles e
tratar por etapas. A obra seria rápida. Algo em torno de quatro meses.
Tendo recurso, faz rapidamente.
ÉPOCA – A dessalinização da água do mar seria um caminho?
Tundisi –
Sem dúvida. É um dos mais importantes. Só precisa pensar que é caro
fazer isso. O problema é: quanto vai custar o bombeamento para o
planalto? Precisa de muita energia para levar a água de Santos para São
Paulo e para o interior. Uma possível saída seria usar a água
dessalinizada nas cidades costeiras e a água da Serra no planalto. Seria
mais barato.
ÉPOCA – Importar água, como aconteceu na Espanha, seria uma solução para o Brasil?
Tundisi –
Nós temos uma belíssima fonte de água, o Amazonas. O rio despeja 225
mil metros cúbicos por segundo de água no Oceano Atlântico. Mas quanto
tempo levaria? De novo: tem de bombear para o planalto. Seria uma
solução para as áreas costeiras.
ÉPOCA – Em alguns países, a água do vaso sanitário é tratada e usada de novo para o consumo. Por que o Brasil não faz isso?
Tundisi –
Isso é absolutamente possível, os sistemas de tratamento hoje são muito
avançados. Trabalho na Jordânia. Ali chove 50 milímetros por ano. Cada
gota é reciclada. Em Israel, acontece o mesmo. A média de chuva no
Brasil é de 1.800 milímetros por ano numa condição normal. Por isso
desperdiçamos.
ÉPOCA – Estamos sobre o maior aquífero do mundo, o Guarani. Qual seria o custo de utiliza-lo?
Tundisi –
O aquífero Guarani não é contínuo. Ele é composto de bolsões. É um
recurso importante e já usado por muitas cidades. Mas precisamos tomar
cuidado com o excesso de uso. Água subterrânea é reserva, não é para
usar sempre. E precisa de fiscalização. Sei de um condomínio que rega
seu campo de golfe com água do aquífero. É um absurdo. O condomínio liga
seu esgoto no sistema da rede pública e aquela água vai embora. Por que
não fazer uma estação própria de tratamento de esgoto e pegar essa água
menos nobre para irrigar o campo? Eles estão irrigando o campo de golfe
com ouro.
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